domingo, 26 de dezembro de 2010

HISTORIOGRAFIA SERGIPANA

O SOCIAL NA HISTORIOGRAFIA SERGIPANA




Maria Thetis Nunes


Como acontece no país, em Sergipe também há o predomínio do interesse dos historiadores pela história política. A corrida pelo poder, os embates entre as autoridades representativas da metrópole nos tempos coloniais, as disputas pelos cargos, no executivo e no legislativo, entre os potentados da terra na época imperial, as lutas das oligarquias pelo comando político do Estado, através dos dois partidos rivais, ou melhor, das duas facções, (só assim poderiam ser considerados, desde quando não existia qualquer conotação ideológica diferenciando-os), e que se estenderam até mesmo após a Revolução de 1930, foram fatos que sempre impressionaram os historiadores, alguns sendo estudados minuciosamente.

Mas, geralmente, esqueceram esses estudiosos que, por trás das lutas pelo poder estavam as classes sociais, cujas características eram condicionadas pela estrutura econômica dominante.


Não existe uma história social de Sergipe, vista globalmente. Até hoje não foi captada, pelos historiadores, a dinâmica da evolução social sergipana desde que os aventureiros, através da doação de sesmarias, se estabeleceram no território conquistado aos índios, aliados aos traficantes franceses do pau-brasil, por Cristóvão de Barros na última década do século XVI, aos curraleiros que, tangendo os rebanhos, ocuparam as agrestadas as regiões interioranas. Também não foi demonstrado o impacto das culturas de subsistência, especialmente da mandioca, na dinâmica da hierarquização social, condicionando o aparecimento de uma população de homens livres dentro do regime escravocrata dominante, bem como a importância das culturas de exportação - especialmente o algodão e a cana-de-açúcar - para definir os donos do poder e a manipulação que passaram a exercer na vida política local. A formação das poderosas oligarquias em Sergipe, desde a segunda metade do século XVII, seu desenvolvimento e apogeu no Império, e mesmo até o fim da Velha República, não foram ainda estudados em seu encadeamento.

Existem estudos parciais desses aspectos diversos da formação sergipana. Nos cronistas coloniais poucas referências encontramos sobre o tema; geralmente, quando escrevem sobre a Capitania de Sergipe del Rei se detêm nas lutas ali travadas pela posse da terra, esquecendo as relações sociais existentes. Só em 1834, em plena época regencial, foi publicado um trabalho de um naturalista sergipano, Antônio Moniz de Souza - Viagens e observações de um naturalista brasileiro, onde foi registrado um interessante apanhado da sociedade sergipana de então, destacando-se a situação de dependência da mulher na vida social. 1

Sílvio Romero, com o entusiasmo e a clarividência que sempre marcaram sua atuação intelectual, em 1874, quando iniciava a vida parlamentar na Assembléia Legislativa de Sergipe, ao defender a criação de um prêmio para quem escrevesse uma história da Província, bradava: "Eu bem sei, senhores, que até lá nos altos assentos da literatura brasileira a concepção que fazem da história é paupérrima e mesquinha. E que outra cousa o Brasil tinha direito de esperar de homens de cultura acanhadíssima, como um Pereira da Costa e um Adolfo Vernhagen? Espíritos para os quais a intuição do mundo e da humanidade é em extremo franzina, eles não podiam dar-nos mais que uma glosa impertinente de Pitta, Southey e Armitage, que lhes serviam de guia. E o que se há de dizer de historiadores que hoje em dia têm ainda destes mestres?"

Criticava, também, os franceses Guizot, Thierry, Thiers e Michelet, que, "com todos os seus brilhos de estilo e eloqüência, não deixam de ter passado à categoria de historiadores meramente literários". 2 E o tribuno sergipano já antecipava o largo descortino que teve das diversas correntes do pensamento do mundo, ao dizer: "Entretanto, é mister que se viva completamente estranho a esta ordem de estudos para desconhecer que o socialismo, digamos o nome sem receio de ruído, o socialismo, em suas mais robustas manifestações, de S. Simon e, sobretudo, a de Proudhon".

Perorando, enfaticamente bradava: "Queremos ter o direito de supor que a província, em breve, possuirá, não a história inanimada e sem convicções, pálida e sem entusiasmo, mas a história em que sua vida pretérita ressurja límpida e vigorosa; a história que ensina, por que é certa; que anima porque é santa; aquela em cuja páginas sente-se o aroma das eternas leis do pensamento e a vizinhança de um conviva severo: - A Ciência". 3

Justamente nessa década de 1870 quando Sílvio sonhava uma história de Sergipe escrita dentro das concepções científicas dominantes, surgiam publicados Apontamentos históricos e topográficos de Sergipe, da autoria de Antônio José da Silva Travassos, o Comendador Travassos, (1804/1872), o primeiro sergipano a escrever uma história de sua terra, assim, um pioneiro da historiografia sergipana. "Autodidata, seus apontamentos constituem, principalmente, um interessante repositório de fatos políticos, que testemunhou ou dos que participou ao tempo do Império". 4 Sua preocupação voltou-se, sobretudo, para o processo político que vivera sua Província. Quatro anos depois, aparecia a publicação da Memória sobre a Capitania de Sergipe - Ano de 1808, de D. Marcos Antônio de Souza (1771/1842), que, nos começos do século passado, foi vigário da Freguesia de Jesus, Maria e José do Pé do Banco (hoje cidade do Siriri), Esse pequeno trabalho é de considerável importância para nossa historiografia. Ao lado de fixar os traços marcantes da vida econômica da Capitania de Sergipe, percebeu o comportamento da sociedade sergipana, dos fins do século XVIII e começos do século XIX, com uma argúcia que nos surpreende. 5

Só em 1891 veio a publicação da primeira história global de Sergipe, escrita por Felisbelo Firmo de Oliveira Freire (1858/1916). Homem de vasta cultura, além das várias atividades que exerceu - médico, jornalista, parlamentar, político (foi o primeiro governador de Sergipe após a Proclamação da República e Ministro no governo de Floriano Peixoto), distinguiu-se como historiador. Imbuído do cientificismo naturalista da época, vê-se em sua obra a influência do evolucionismo spenceriano, e das concepções de Haeckel, e das novas ciências que se afirmavam como a Antropologia, a Etnologia, a Filologia, a Geografia Humana. Sua História de Sergipe é uma tentativa de inter-relação das condições geográficas com o meio social. 6 Mais avançada que este livro nas conclusões, é a História Territorial de Sergipe, publicada em 1906, parte de um ambicioso projeto de História Territorial do Brasil, infelizmente não concluído. Outras suas obras ainda provocam discussões nos dias atuais, como a História Constitucional do Brasil, História do Banco do Brasil, a Revolta de 6 de novembro de 1896, em recentes reedições.

Coube, porém, a Manuel Curvelo de Mendonça (1870/1914) ser o pioneiro da historiografia social sergipana ao publicar Sergipe Republicano (Estudo Crítico em 1896). Na busca da interpretação social do processo republicano na Província de Sergipe, que ele participou, entusiasticamente, como jornalista, enveredou pelo socialismo utópico, do qual era um apaixonado, levando-o a fundar a discutida Universidade Popular de 1906. 7

Sob a influência da Escola do Recife, onde alguns tinham sido discípulos de Tobias Barreto, diversos bacharéis que retornaram a Sergipe, dentro as novas concepções filosóficas e sociológicas que os marcavam, como Manuel dos Passos de Oliveira Teles, Joaquim Prado Sampaio, Francisco Carneiro Nobre de Lacerda, escreveram estudos sobre sua terra natal. "Intelectuais que falam do monismo, negam o direito natural, riem da metafísica, porém, não coram de escrever sobre as coisas do povo, sobre cacumbis e taieiras, lendas de São Cristóvão ou da Serra de Itabaiana, compõem poemas épicos narrando as conquistas de Cristóvão de Barros. 8

Dentro das tentativas de trazer o social para explicar a realidade sergipana, temos a publicação de Etnias Sergipanas, de Felte Bezerra, em 1951. 9 Através do estudo dos componentes étnicos, esboçou a formação social sergipana. Outra, é A Vida Patriarcal de Sergipe, de Orlando Vieira Dantas, doublé de usineiro e intelectual. Homem progressista, de formação humanística, seu trabalho foi bem definido por ele próprio: "Há três anos que trabalho na Vida Patriarcal de Sergipe, pesquisando as origens das famílias, as levas africanas, a presença dos indígenas, a formação dos engenhos de açúcar e do comércio que os portugueses criaram, a mestiçagem do branco com o negro e com o indígena nas fazendas de gado, do negro com a indígena, preparando, despretensiosamente, uma edição que sirva de base para a visão histórica da sociedade em Sergipe". 10 Lamentavelmente, a morte impediu sua continuação.

A criação da Universidade Federal de Sergipe veio permitir o aparecimento de algumas obras voltadas para aspectos da formação social sergipana. Foram elas O Impasse do Federalismo Brasileiro (Sergipe e a Revolta de Fausto Cardoso) de Terezinha Oliva de Souza. 11 Estudo sério, documentado, levanta a vida social sergipana nas primeiras décadas republicanas através das lutas das oligarquias locais para alcançarem o poder. Em O Tenentismo em Sergipe, 12 A Revolução de 1930 em Sergipe, 13 José Ibarê Costa Dantas reconstitui a história social de Sergipe dos fins da Velha República e começos da República surgida da Revolução de 1930. Em História da Educação em Sergipe, Maria Thetis Nunes, partindo do pressuposto de ser a educação um fato social, e, assim, ligado estreitamente à estrutura sócio-econômica vigente, procurou relacionar a vida educacional sergipana desde seus primórdios até 1930, procurando, sobretudo, fixar o quadro social dominante. 14 já em Sergipe Colonial, obra em preparo, procura, principalmente, esboçar a sociedade sergipana da época em seus traços característicos e em sua dinâmica.

Cumpre destacar o trabalho importante que vem desenvolvendo, através de pesquisas nos arquivos nacionais e portugueses, o professor da UFB, Luís Mott. Suas publicações, dispersas em revistas e folhetos, acabam de ser publicadas pelo Governo do Estado de Sergipe sob o título: Sergipe del Rey - População, Economia e Sociedade. Pelos dados apresentados, colhidos nas fontes primárias da história sergipana, este livro torna-se básico para os que queiram escrever sobre a história social de Sergipe.

Sergipe está à espera do historiador de sua formação social. Uma história feita globalmente, considerando as contribuições anteriores, e que estude o encadeamento das transformações ocorridas desde que no território se fixaram os primeiros colonizadores, vitoriosos na luta contra os indígenas aliados aos traficantes franceses do pau-brasil, despojando-lhes de suas terras, aos dias atuais quando o êxito das pesquisas mineralógicas vem trazendo mudanças estruturais radicais.

NOTAS E REFERÊNCIAS

1. SOUZA, Antônio Moniz de. Viagem e observações de um brasileiro, que, desejando, ser útil à sua pátria, se dedicou a estudar os usos e os costumes dos seus patrícios, e os três reinos da Natureza em vários lugares e sertões do Brasil, Rio de Janeiro, Typ. Americana, 1834.

2. CALASANS, José. Um Discurso de Sílvio Romero. Salvador, Centro de Estudos Baianos, 1951, p. 3 e 4.

3. CALASANS, José. Obra citada, p. 4

4. TRAVASSOS, Antônio José da Silva. Apontamentos históricos e topográficos sobre a Província de Sergipe. Rio de Janeiro.

5. CALASANS, José. Introdução ao estudo da historiografia Sergipana. Trabalho apresentado ao V. Simpósio de História do Nordeste, Aracaju, 1973, p. 4

6. SOUZA, Marcos Antônio de. Memória sobre a Capitania de Sergipe. Ano 1808. Aracaju, s. c. el. 1877. Reeditada na Revista de Aracaju, nº 1, 1943

7. FREIRE, Felisbelo, História de Sergipe (1575/1855). Rio de Janeiro, Typ. Perseverança, 1891. Reeditada pela Editora Vozes em convênio com o Governo do Estado de Sergipe, 1977.

8. MENDONÇA, Manuel Curvelo de. Sergipe Republicano (Estudo Crítico) Rio de Janeiro, Casa Mont'Alverne, 1896.

9. CALASANS, José. O desenvolvimento cultural de Sergipe na primeira metade do século XX. Revista do Instituto Histórico de Sergipe, nº 20, (1960/1965), p. 49

10. DANTAS, Orlando Vieira: A vida patriarcal de Sergipe. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1980, p. 15

11. SOUZA, Terezinha Oliva: Impasses do Federalismo Brasileiro (Sergipe e a Revolta de Fausto Cardoso). Universidade Federal de Sergipe/Paz e Terra, 1985.

12. DANTAS, José Ibarê. O Tenentismo em Sergipe. Editora Vozes, 1974

13. DANTAS, José Ibarê. Revolução de 1930 em Sergipe - Dos Tenentes aos Coronéis. Cortez Editora/Universidade Federal de Sergipe, 1983

14. NUNES, Maria Thetis. História da Educação em Sergipe. Universidade Federal de Sergipe/Governo do Estado de Sergipe/Paz e Terra, 1984.

15. MOTT, Luiz R. B. Mott. Sergipe del Rey. População, Economia e Sociedade. Governo de Sergipe/Secretaria da Educação e Cultura/FUNDESC, 1986



Fonte: NUNES, Maria Thetis. O social na historiografia sergipana. In: Congresso Brasileiro de Tropicologia, 1, 1986, Recife. Anais do Congresso Brasileiro de Tropicologia. Recife: Fundaj, Massangana, 1987. p.211-215.


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