JORGE AMADO EM SÃO CRISTÓVÃO
texto e pesquisa de Thiago Fragata, o especialista nas pesquisas sobre
Jorge Amado em Sergipe
Jorge Amado e comitiva na Praça São Francisco, 7/1/1994.
Da esquerda para direita: ?, Alta de Souza, Calasans Neto, Jorge Amado, Vesta Viana, Zélia Gattai, ? e Carybé.
Da esquerda para direita: ?, Alta de Souza, Calasans Neto, Jorge Amado, Vesta Viana, Zélia Gattai, ? e Carybé.
Thiago Fragata*
Sergipe
faz parte da vida e obra de Jorge Amado. Escritores dedicaram textos a
relação telúrica, sentimental e até familiar do escritor baiano. Rui
Nascimento, por exemplo, escreveu Jorge Amado: uma
cortina que se abre (2007) rememorando a presença do escritor em
Estância nos idos de 1935 e 1937/1938. Mas qual a relação do autor de Gabriela, Cravo e Canela
especificamente com São Cristóvão, ex-capital e afamada quarta cidade
mais antiga do Brasil? Responder à pergunta encerra o objetivo desse
artigo dividido em duas partes.
Jorge
Amado nasceu em Itabuna, Bahia, no dia 10 de agosto de 1912. Filho de
Eulália Leal e de João Amado de Faria, natural de Estância que cedo
migrara para Bahia. O ramo da família paterna viveu boa parte da sua
experiência entre esse município, Itaporanga e Aracaju. Ainda assim,
consideramos factível destacar São Cristóvão na vida e literatura amadiana.
O segundo romance de Jorge Amado, intitulado Cacau, escrito aos 20 anos, desvela São Cristóvão em 1933, ano de sua publicação. “Romance proletário”,
como o próprio autor definiu, trata da vida acidentada de José
Cordeiro, conhecido como Sergipano, filho do proprietário da Fábrica de
Tecidos de São Cristóvão. Após a morte do pai, vai trabalhar como
operário na fábrica gerenciada pelo tio. Demitido injustamente, migrou
então para Bahia, indo trabalhar nas plantações de cacau.
Exemplar
da literatura engajada do recém-filiado membro do PCB, a obra em tela
impressiona pela carga de emotividade e requinte poético. Vale a pena
transcrever os parágrafos que versam a quarta cidade mais antiga do
Brasil: “A cidade subia pelas ladeiras
e parava lá em cima, bem junto ao imenso convento. Olhando do alto,
via-se a fábrica, ao pé do monte pelo qual se enroscava a cidade como
uma cobra de uma só cabeça inúmeros corpos. Talvez não fosse bela a
velha São Cristóvão, ex-capital do Estado, mas era pitoresca, pejada de
casas coloniais, um silêncio de fim de mundo, as igrejas e os conventos a
abafarem a alegria das quinhentas operárias que fiavam na fábrica de
tecidos.
Acho
que meu pai montara a fábrica em São Cristóvão devido à decadência da
cidade, à sua paz e ao seu sossego, triste cidade parada que devia
apaixonar os seus olhos e o seu espírito cansado de paisagens e de
aventuras”.
Embora
não tenha nominado o genitor ou a fábrica têxtil, desvelamos o quadro
da realidade da ex-capital sergipana daquele contexto. Em 1914 foi
inaugurada Fábrica Têxtil Sam Christovam S.A., seus proprietários eram
Felix Pereira de Azevedo e Othoniel Amado. Sobre este Amado existe uma
situação nebulosa relacionada ao nome do romancista talvez um possível
parentesco. Cito apenas memória de Junot Silveira, amigo e editor do
jornal A Tarde, edição de 11/7/1993: “figura
maior do meio social da cidade [São Cristóvão] era o Dr. Pedro Amado,
parente de Jorge Amado, proprietário de uma fábrica de tecidos”.
Vejamos
como Jorge Amado descreve os sobrados da praça São Francisco,
Patrimônio da Humanidade reconhecido pela UNESCO, no dia 1/8/2010.
Também, o orfanato da cidade instalado no Lar Imaculada Conceição,
antiga Santa Casa de Misericórdia de São Cristóvão:
“Nós
morávamos então num enorme e secular sobrado, ex-morada particular dos
governadores, uma pesadíssima porta de entrada, as janelas irregulares,
todo pintado de vermelho, grandes quartos, nos quais eu e Elza nos
perdíamos durante o dia brincando de picula. À noite, por brinquedo
algum entraríamos num deles, pois temíamos as almas vagabundas do outro
mundo, almas penadas que assobiavam e arrastavam correntes, segundo a
veracíssima versão de Virgulina, preta centenária que criara mamãe e nos
criava agora.
Ao
lado da nossa casa ficava o ex-palácio do governo, quase a cair,
transformado em quartel onde alguns soldados habitavam, sujos e
preguiçosos. Em frente, o orfanato, seis freiras e oitenta meninas,
filhas de operários e pais ignorados. (...) As casas, todas antiquadas e
atijoladas, estendiam-se pela praça do convento e equilibravam-se pelas
ladeiras”.
Pertinente
identificar os sobrados. O primeiro trata-se da atual Casa do Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que nenhum
documento comprova a função de “residência de ex-governadores”,
tampouco Ouvidoria. Pesquisa de 2005 revelou que o sobrado foi
construído no século XVIII pelo tenente-coronel Francisco Xavier. Teve
ao longo do dezenove, como proprietários, o senhor de engenho Luiz
Francisco Freire e o barão Felisberto de Oliveira Freire. Quanto ao
outro sobrado, trata-se do atual Museu Histórico de Sergipe. Cumpre
destacar que este foi “ex-palácio do governo”, entre
1823 e 1855, perdendo essa função com a Mudança da Capital. No início da
década de 1930, o sobrado havia realmente se transformado em quartel da
polícia.
O
que era a fábrica no romance que assume o olhar do trabalhador nas
relações sociais? Narrado na primeira pessoa pelo protagonista, lê-se: “A
fábrica era um caixão branco cheio de ruídos e de vida. Setecentos
operários, dos quais quinhentas e tantas mulheres. Os homens emigravam,
dizendo que “trabalhar em fiação só pra mulher.
Os mais fracos não iam e casavam e tinham legiões de filhas, que
substituíam as avós e as mães quando já incapazes abandonavam o serviço”.
A obra explicita a predileção no “mundo da fábrica”
pelo trabalho feminino e infantil justificado pelos baixos salários. A
cidade fabril fotografada no romance relegava aos homens dois destinos:
os cafezais de São Paulo ou as plantações de cacau de Ilhéus, da Bahia.
Assim, depois de sua demissão, Sergipano prepara as malas e embarca no
navio Murtinho, de Aracaju a Salvador.
A leitura de Cacau revela um jovem escritor “sensibilizado com as fortes desigualdades sociais do país” - ele havia se filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1932. Ademais “inicia o ciclo de livros que retratam a civilização cacaueira”,
seguido por Terras do sem-fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1944),
Gabriela, cravo e canela (1958) e Tocaia Grande (1984). As páginas de
Cacau representam, indiretamente, a prova da presença de Jorge Amado em
São Cristóvão. Ele escreveu boa parte da ficção em Aracaju em 1932, mas
retrata fielmente a cidade histórica. Sua poeticidade faz contraponto
com a crítica social que expõe a injustiça na fábrica de São Cristóvão e
na fazenda de cacau da Bahia.
Vesta Viana: amiga de Jorge Amado e Zélia Gattai
Jorge
Amado semeou livros e amigos. Mas falando um pouco da sua biografia e
Sergipe, o autor se casou em 1933, com Matilde Garcia Rosa, na cidade de
Estância. Desse pr
Juntos,
o casal de escritores conheceu o mundo. Em São Cristóvão cultivaram uma
amizade duradoura com Maria Vesta Viana. Reservamos espaço para evocar a
artista sancristovense. No início de 1970, Jorge Amado e Zélia Gattai
passearam pelo nordeste e não esqueceram Sergipe. A História e a cultura
da vetusta ex-capital fascinaram o casal que resolveu degustar os ares e
os acepipes. Num assédio à casa n. 54, da rua Frei Santa Cecília, onde a
dona Noêmia Soares Viana comercializava seus doces típicos, descobriram
uma menina pintando casarões e igrejas centenárias em meio ao florido
jardim. Na ocasião, a jovem artista presenteou o escritor com uma tela.
De volta a Salvador, durante entrevista sobre as impressões da viagem, Jorge Amado comentou a respeito da “jovem
artista, meiga, ingênua como os traços retangulares de sua pintura
primitivista que ganhou sua atenção, lá na antiga São Cristóvão, cidade
retratada em suas linhas e cores”.
As considerações do escritor acerca da menina sancristovense geraram um frisson
na imprensa baiana, massificado após o roubo da obra que havia recebido
de presente da artista. O caso não foi levado à justiça mas teve um
desfecho inusitado. O próprio Jorge Amado esclareceu o sumiço do quadro
de sua residência, num tom humorado do seu roteiro de viagem
Salvador-Aracaju: “Passe na casa de Maria Vesta Viana e admire sua
pintura primitiva, compre um dos seus quadros e leve consigo os
conventos e igrejas de São Cristóvão, na ingênua criação da môça
sancristovense. Tive um quadro de Vesta, logo roubado por Dorival Caymmi
que coleciona pintores primitivos às custas dos amigos”.
Diante da repercussão do fato, uma brincadeira, na edição especial da Revista Manchete, Jorge Amado veiculou a importância de conhecer São Cristóvão, em Sergipe, seu acervo arquitetônico e uma artista: Vesta Viana.
Assim, 1970 figurou como ano-chave na vida da “artista primitivista”,
segundo conceito de Jorge Amado. Alguns especialistas cunharam de
primitivista, original, desprovida de perspectivas e academicismo, a
arte naïf. A propósito, Philipe Jean Marie Meilhac atenta que: “irmana-se,
até certo ponto, a arte naïf com a arte popular. Em ambas, o artista
projeta na sua criação a mitologia peculiar a sua cultura, a sua terra, a
sua gente”.
Os
fatos citados oportunizaram o sucesso de Vesta Viana. Com o advento do
Festival de Arte de São Cristóvão (FASC), que teve sua primeira edição
em setembro de 1972, ela teve sua obra consagrada. O FASC, momento e
epicentro das expressões artísticas do Brasil, virou cenário onde a
artista nativa e suas obras desfilaram com desenvoltura. Em discursos de
abertura, exposições coletivas e individuais, debates e cursos
ministrados, a artista naïf brilha, pinta, acontece nas
décadas de 1970 e 1980. Mesmo sem formação acadêmica, Vesta Viana teve o
reconhecimento de especialistas e críticos que fizeram de sua arte
objeto de pesquisa. Antônio Olinto e Zora Seljan, por exemplo, chegaram a
encomendar de Londres os quadros de Vesta Viana. Colecionadores como o
adido cultural do Brasil em Paris, Clovis Graciano, ostentava fascínio
pela obra da artista sergipana.
Para
saciar a fome da clientela Vesta Viana montou ateliê em sua casa. Daí
seus quadros difundiram-se pelo mundo, entre os anos de 1972 e 1986. A
ajuda de Jorge Amado e Zélia Gattai foi importantíssima. Por intermédio
deles sua obra integra o acervo do Museu de Arte Primitiva de Guimarães,
Portugal. Diversas instituições culturais receberam seus quadros; na
Europa, a França, a Espanha, a Inglaterra; na América, Os Estados Unidos
e Canadá.
Na
cidade que tematiza a obra de Vesta Viana, o mecenas não conheceu
apenas igrejas e sobrados, nem saboreou apenas doces e licores, também a
peixada e o pirão de guaiamum. Conta Manoel Ferreira que o ilustre
escritor almoçou no Bar Candangos e no restaurante do Cristo Redentor
com extensa comitiva; gostava de trazer amigos para conhecer os encantos
da cidade quatricentenária.
O
casal de escritores manteve intensa correspondência com a artista
sancristovense. Com presteza, Vesta agenciava artesanato, doces e telas,
a pedido ora de Jorge Amado, ora de Zélia Gattai. Da amizade fraterna
sobraram fotos, exemplares da literatura amadiana, um epistolário e
peças eloqüentes da aura e do fetiche do escritor.
A
relação Jorge Amado e São Cristóvão lembra Irmã Dulce. Ambos nasceram
na Bahia e por uma circunstância ignorada por muitos, conheceram,
vivenciaram e plasmaram a ex-capital sergipana em suas retinas e
memórias. A cidade de 420 anos figura na vida dos
dois na década de 1930, permanecendo até o ocaso. Disse Jorge Amado a
respeito da ex-capital: “Há uma paz na cidade, uma atmosfera azul, uma doçura de vida”. Já Irmã Dulce afirmava que a Bahia deu pra ela a família e São Cristóvão, a certeza de sua vocação religiosa.
*Thiago Fragata – Especialista
em História Cultural pela Universidade Federal de Sergipe (UFS),
Diretor do Museu Histórico de Sergipe (MHS/SECULT), sócio do Instituto
Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE) e membro do Grupo de Estudos
História Popular do Nordeste (GEHPN/CNPq). Publicado no JORNAL DA
CIDADE. Aracaju, XL, N. 11713, 2/8/2011, p. B2; N. 11714, 3/8/2011, p.
B6. E-mail: thiagofragata@gmail.com
Agradecimentos especiais a Fábio André, pelo entusiasmo em compartilhar a novidade de Cacau.
FONTES CONSULTADAS
AMADO, Jorge. Cacau: romance. 42ª. Ed. Rio de Janeiro: Record, 1983.
A TARDE. Salvador, n. 224, 4/4/1970.
A TARDE. Salvador, n. 369, 27/8/1976.
AMADO, Jorge. Salvador-Aracaju: roteiro saboroso para viajantes sem muita pressa. Revista Manchete (Especial). São Paulo, outubro, 1970.
FRAGATA, Thiago. Vesta Viana: naïf de São Cristóvão. JORNAL DA CIDADE. Aracaju, n. 11051, 17/05/2009, p. B6.
GOLDSTEIN, Norma Seltzer (Org.). A LITERATURA DE JORGE AMADO: orientações para o trabalho em sala de aula. São Paulo: Odebrecht, Cia das Letras, 2008.
GOLDSTEIN, Ilana Seltzer; SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). O UNIVERSO DE JORGE AMADO: orientações para o trabalho em sala de aula. São Paulo: Odebrecht, Cia das Letras, 2008.
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Intervenções arqueológicas no sobrado do IPHAN. São Cristóvão, 2006.
JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro, n. 609, 24/5/1970.
Museu Histórico de Sergipe reabre as portas. HISTÓRIA VIVA. São Paulo, ano VII, n. 77, mar. 2010.
NASCIMENTO, Rui. Jorge Amado: uma cortina que se abre. 3ª. Ed. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 2007.
SILVEIRA, Junot. São Cristóvão sempre. A TARDE. Salvador, 11/7/1993.
Thiago Fragata entrevista Maria Vesta Viana. São Cristóvão, 18/3/2011.
Thiago Fragata entrevista com Manoel Ferreira Santos. São Cristóvão, 14/11/2008.
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