Lampião estava de tudo furioso.
LAMPIÃO EM NOSSA SENHORA DAS DORES
Lampião entrou pela primeira vez na cidade de Nossa Senhora das Dores,
em Sergipe, no dia 25 de novembro de 1929 em ação considerada amistosa,
ou seja, bem diferente do que ocorrera dias depois quando impiedosamente
atacou a cidade de Queimadas na Bahia assassinando fria e covardemente
sete indefesos soldados da polícia militar local, então aprisionados e
imobilizados, em fatídico dia 22 de dezembro daquele ano, data essa que
ficou marcada para sempre como sendo das maiores atrocidades praticadas
pelos cangaceiros nas terras nordestinas.
Em Nossa Senhora das Dores, como sempre fazia Lampião quando iniciava
as suas investidas criminosas chegando à determinada cidade, seqüestrou e
manteve como sendo seu prisioneiro o vaqueiro de uma fazenda das
cercanias da Serra do Besouro para que o mesmo servisse de guia para o
bando composto então de sete cangaceiros sob o seu comando, vez que
antes, estrategicamente, ali mesmo, para despistar e confundir as
autoridades locais dividiu os grupos colocando-os sob os comandos de
Corisco e Zé Sereno que então seguiram pela Serra do Boqueirão e
adjacências
A ação inicial do bandido Lampião sempre objetivava extorquir os mais
abastados cidadãos mediante ameaça de invasão, saque às casas
comerciais, dentre outros tantos crimes que em decorrência da violência
usada pelos cangaceiros por certo ocorreriam caso não fosse atendido.
A cidade vivia um dia de feira como tantos outros dias de feira que
antecederam aquela data, entretanto, a chegada de Lampião fez aquele dia
de feira diferenciado e tornou um verdadeiro pandemônio entre toda a
população dorense, pois só o seu nome fazia tremer o mais valente dos
valentões. A exemplo dos outros lugares, muitos correram a se esconder e
outros mais corajosos e/ou curiosos aglomeraram-se para ver de perto o
famoso bandoleiro sanguinário que tanto aterrorizava os nordestinos. Não
distante do seu modus operandi, Lampião mandou dois cangaceiros até o
alojamento da polícia militar onde se encontrava apenas dois praças que
logo foram convencidos a não reagirem sob pena de morte, enquanto outro
bandido tomou conta do telegrafo para que não fosse passada nenhuma
mensagem para as cidades circunvizinhas. Com o restante do grupo,
Lampião dirigiu-se até a residência do Padre João de Souza Marinho –
pároco que atuou em Nossa Senhora das Dores de 1928 a 1933 e que foi o
responsável pela inauguração da bonita e majestosa Igreja Matriz dessa
cidade em 1930 – e depois de pedir a benção ajoelhado aos pés do vigário
e de ser abençoado, o próprio Padre também passou a ser usado pelo
cangaceiro chefe na sua trama criminosa. A partir de então o Padre
Marinho ficou encarregado juntamente com o Intendente do Município,
Coronel Manoel Leonidas Bomfim, de arrecadar junto à sociedade local a
vultosa soma de cinqüenta contos de reis para que não houvesse
derramamento de sangue, violência excessiva ou crimes diversos entre o
povo dorense. Entretanto, essa quantia exigida não foi alcançada pelos
involuntários arrecadadores da extorsão. Alguns dizem que fora
arrecadado somente a metade do exigido, outros, porém, alegam que a
quantia não passou de oito contos de reis. De uma maneira ou de outra, o
fato é que de pronto a soma que não era pouca fora aceita pelo chefe
dos bandidos, embora conste da história que, além disso, houve pequenos
saques a algumas lojas comerciais. Na loja de Pedro Vieira Teles, mais
conhecido por Mestre Pedrinho Alfaiate, alguns cangaceiros se apossaram
de vários pares de meias, assim como também, tomaram à força algumas
peças de tecidos e perfumes na loja de Manoel Leônidas. Houve momentos
de algazarra na loja de Manoel Jose de Jesus logo contidos por
interferência de Lampião que inegavelmente exercia grande voz de comando
perante os seus asseclas.
Segundo consta das pesquisas do escritor Ranulfo Prata realizadas na
própria época dos acontecimentos, os cangaceiros encantando-se com a
beleza das moças da cidade pediram permissão a Lampião para organizarem
um baile no sentido de haver um pouco de diversão, fato esse não
concretizado em virtude da intervenção de terceiros. Desse ocorrido,
complementa as pesquisas o escritor e advogado Jose Lima Santana, tendo
inclusive entrevistado o Mestre Pedrinho anteriormente citado,
asseverando que o cangaceiro que sugeriu o baile teria sido o jovem
Volta Seca que na época contava com pouco mais de onze ou doze anos de
idade, ao passo que quem teria contestado o pedido fora o escrivão
Cotias e/ou o Coronel Figueiredo, entretanto, de um jeito ou de outro, o
fato é que Lampião, além de não concordar com a realização da festa
ainda mandou que Volta Seca refreasse o seu ímpeto de gaiatice e se
mantivesse sem sair, como espécie de castigo, dentro da “marinete”
pertencente a Joel Barreto de Souza, mais conhecido por “seu Jóia”, até
que tudo terminasse.
E assim Lampião realizou a sua primeira visita de forma supostamente
complacente a cidade de Nossa Senhora das Dores, tendo daí seguido
viagem para Capela no automóvel pertencente a Otacílio Menezes, enquanto
que os demais cangaceiros seguiram na citada “marinete” do “seu Jóia”.
Em Capela, igualmente de forma “amistosa” e até assistindo um filme no
cinema local, Lampião novamente conseguiu êxito na sua extorsão e ali
também não houve derramamento de sangue, como de igual modo não houve em
Aquidabã, a cidade seguinte dessa trina visita indesejada realizada
pelo seu criminoso bando.
Seguindo o adágio popular de que “brasileiro só fecha a porta depois de
roubado”, assim a cidade de Nossa Senhora das Dores fechou a sua. A
Intendência Municipal que hoje é equiparada a Prefeitura contratou
alguns corajosos homens para servirem de guardiões, de protetores da
população. Das pesquisas realizadas nos arquivos municipais pelo
escritor Jose Lima Santana ficou constatado através do achado das folhas
de pagamento da época que Enock Menezes Campos, Pedro Francisco Dantas,
Antonio Pedro dos Santos, Brasilino Vieira Ludugero, João Andrade e
Arnaldo Gomes recebiam dinheiro mensalmente para dar segurança a
população dorense, ou seja, uma espécie de guarda municipal armada
pronta para matar e morrer em combate se preciso fosse.
Infelizmente esse exemplo não foi seguido por outros municípios e quase
um ano depois o bando de Lampião fez a mesma incursão a essas três
cidades, só que em sentido inverso, ou seja, Aquidabã, Capela e Nossa
Senhora das Dores. Desta feita a visita de Lampião, além de indesejada
não fora nada amistosa, muito pelo contrário, houve atrocidades diversas
com rios de sangue e lágrimas em toda a sua trajetória.
Quando o bando de Lampião entrou na cidade de Aquidabã, o ínfimo
contingente policial fugiu às pressas deixando as pessoas totalmente
desprotegidas e nas garras dos cangaceiros. Jose Custódio de Oliveira,
mais conhecido por Zé do Papel fora arrastado ruas acima e em frente a
um armazém próximo da praça principal da cidade teve a sua orelha
decepada a golpe de faca pelo próprio Lampião, depois do bando ter
praticado saques no comércio local e tantos outros crimes de torturas
contra pessoas amedrontadas, dentre os quais o assassinato de um débil
mental de nome Souza de Manoel do Norte, mais conhecido por Abestalhado,
sem esquecer que o endiabrado cangaceiro Zé Baiano pegou o roceiro
Eduardo Melo e após espancá-lo com o coice do seu fuzil, também cortou a
sua orelha seguindo o exemplo do seu chefe. Zé do Papel ainda viveu por
muito tempo e viu o cangaço se acabar e seu carrasco morrer,
entretanto, o Eduardo Melo não teve a mesma sorte e faleceu cerca de um
mês depois da perversidade sofrida.
De Aquidabã o bando seguiu para Capela, mas aí a população fora avisada
com antecedência e se armou para enfrentar os bandidos que não
conseguiram transpor as barreiras bem articuladas pelos bravos cidadãos
capelenses. As noticias das atrocidades em Aquidabã e da resistência em
Capela logo se espalharam via telegrafo tal qual rastilho de pólvora.
Assim, a cidade de Nossa Senhora das Dores que já estava guarnecida
pelos seguranças contratados pela Intendência Municipal também ganhou
reforço da própria população que se armou do jeito que pode para
aguardar o facínora. O calendário marcava o dia 15 de outubro de 1930
quando o bando agora com 18 componentes pisou pela segunda vez as terras
de Nossa Senhora das Dores. Lampião estava de tudo furioso, “soltando
fogo pelas ventas” tal qual um imaginário dragão da Idade Média, pois
além da derrota sofrida em Capela, também sabia que ali as trincheiras o
aguardavam.
Além de ser um excelente estrategista, um verdadeiro general maléfico
das caatingas, Lampião tinha uma eficiente rede de informações. Assim,
chegou ao subúrbio Cruzeiro das Moças, por volta das 20:00 horas daquele
dia, e temendo reação idêntica à de Capela, dirigiu-se à casa de Jose
Elpídio dos Santos, filho de José Raimundo das trincheiras, justamente
um dos guardiões contratados para defender a cidade. O seu objetivo era
saber onde estavam montadas as trincheiras, a quantidade homens
existentes, suas armas e munições dentre outros informes, entretanto, o
interpelado cidadão reagiu soberbamente e não traiu os entrincheirados
nem tampouco o povo de Nossa Senhora das Dores, fato que valeu a sua
própria vida depois de barbaramente torturado em vão para delatar os
seus conterrâneos dorenses. Do brutal assassinato de Jose Elpídio dos
Santos fora gerado o único Processo Criminal contra o famigerado Lampião
no Estado de Sergipe.
Consta das informações coletadas e colacionadas no referido Processo
Criminal que a vítima Jose Elpídio dos Santos após ser sequestrada fora
amarrada em um dos cavalos que serviam de montaria ao bando seguindo
junto com os cangaceiros pelas cercanias da cidade. Na bodega
pertencente a Manoel Martins Xavier, mais conhecido por Santo
Bodegueiro, que por sinal não se encontrava presente no momento, houve
saque e até o sequestro da sua mulher, Sergina Maria de Jesus, também
conhecida por Constância, deixando os seus filhos pequenos sozinhos, sem
os cuidados maternos pelo resto daquela noite.
Na Fazenda Candeal Lampião e a sequestrada Sergina Maria de Jesus
dormiram no mandiocal, um amarrado ao outro, ou seja, os braços dela
amarrados a uma das pernas dele, enquanto os outros cangaceiros e o
sequestrado Elpídio dormiram na beira da estrada, todos próximos uns dos
outros.
Na madrugada de 16 de outubro, após varias tentativas de obter
informações não conseguidas, Lampião matou Elpídio e mandou Sergina
voltar para casa. No laudo de corpo cadavérico anexado ao referido
Processo Criminal, consta que o corpo da vítima estava perfurado a
balas, e havia, ainda, um "rendilhado" de punhal. Os dedos das mãos, sob
as unhas, estavam perfurados e a barba estava queimada. Ou seja, tal
documento comprova que Lampião e seu bando torturaram Elpídio, antes de
matá-lo, com requintes crueldade e covardia. A vítima preferiu morrer a
delatar o seu pai e os demais guardiões da cidade. Um homem de coragem e
determinação sem dúvida. Um homem que apesar de todo o atroz sofrimento
que viveu não ficou no rol dos traidores do seu povo. Um homem que
merece ser mais bem reconhecido pelas Autoridades constituídas de Nossa
Senhora das Dores da atualidade.
Das pesquisas também consta que fora assassinado nesse trajeto um pobre
rapaz, que era alienado mental, na saída do povoado Taboca. Dito rapaz,
não identificado, teria na sua insanidade mental mexido com o cavalo de
Lampião, segundo dizem, e por isso fora barbaramente executado a tiros
pelos bandoleiros sem dó ou piedade.
Consta das grandes atrocidades que ficou para sempre marcada na
história cangaceira, a castração do cidadão Pedro José dos Santos, vulgo
Pedro Batatinha, que vinha da Malhada dos Negros, a fim de arrancar um
dente em Nossa Senhora das Dores. Após ser imobilizado, de um só golpe
em amolada faca foi decepado os seus testículos por um covarde
cangaceiro aos olhares e risos dos seus colegas comandados por Lampião.
O pobre do Batatinha, enfim, fora socorrido e encaminhado para
Aracaju, onde o Dr. Belmiro Leite tratou do seu grave ferimento.
Batatinha escapou e, segundo informações colhidas, morreu, na década de
1990, em São Paulo, por sinal casado, embora sem notícias de que o mesmo
realizava as suas obrigações sexuais. Além de Ranulfo Prata e Jose Lima
Santana, outros autores que escreveram sobre o cangaço registraram o
fato da covarde e cruel capação de Batatinha.
Com a divisão efetiva do grupo de cangaceiros por Lampião em virtude da
prisão de Volta Seca em 18 de fevereiro de 1932, formaram-se subgrupos
chefiados por Corisco, Zé Baiano, Zé Sereno, Labareda e Pancada, sendo
que cada um deles tinha o seu campo delimitado de atuação. Assim, o
cangaceiro baiano de Chorrochó, Jose Ribeiro Filho, mais conhecido por
Zé Sereno, ficou atuando criminosamente nas terras de Nossa Senhora das
Dores e adjacências. Dentre as batalhas travadas pelo bando de Zé Sereno
com populares, resistentes ou com a polícia volante, há de se destacar o
“Fogo do Salobro”, no qual um dos cangaceiros, o Lírio Roxo, foi morto e
decapitado, e o “Fogo do Cajueiro”, combate de bravura e resistência
ocorrido no final da década de 30, bem próximo a chacina de Angico
ocorrida em 28 de julho de 1938, cujo fato é hoje destaque no Projeto
Memórias muito bem coordenado pelo historiador João Paulo Araujo de
Carvalho na cidade de Nossa Senhora das Dores, sendo inclusive tema de
um filme com o mesmo título em longa metragem que está sendo rodado com a
participação de abnegados artistas da terra. Consta das pesquisas desse
dinâmico jovem professor, escritor, historiador e porque não dizer
também cineasta – com a ajuda inequívoca de outros participantes do
Projeto Memórias, destarte para o incansável trabalho do artista
plástico e historiador Manoel Messias Moura – em entrevistas diversas
com os moradores mais antigos das localidades dorenses, em especial, a
história contada por dona Isaura Lopes Clementino, testemunha viva do
fato que em breve fará 99 anos de idade. Do seu relato observa-se que o
seu pai, João Clementino, que anteriormente, no município de Triunfo em
Pernambuco tivera um entrevero com Lampião, desta feita, então residente
na Fazenda Cajueiro de propriedade do seu compadre o Coronel Vicente de
Figueiredo, mais conhecido como Coronel Vicente da Tabúa, homem
poderoso dono de cinco fazendas naquele município além de outras em
Gararu e Aquidabã resistiu com a ajuda inequívoca dos seus amigos a um
ataque de Zé Sereno e seus sequazes comandados, entrincheirados dentro
da casa sede dessa fazenda, bravamente lutando e contra-atacando os
bandidos à bala, através das famosas “torneiras” então existentes nas
largas paredes de tal prédio. Do Fogo do Cajueiro há também de se
destacar a coragem e a destreza de Pedro Clementino, filho de João
Clementino e irmão de Isaura Clementino que inclusive chegou a salvar a
vida do Coronel Figueiredo.
O rude Coronel Figueiredo que tinha verdadeira ojeriza a ladrões a
ponto de torturá-los dentro da prensa de fazer os fardos de algodão –
produto abundante nas suas terras – desse dia em diante passou a mais
ter ódio aos bandidos, em especial ao bando chefiado por Zé Sereno.
Apesar do grupo de Zé Sereno ser composto por somente cinco homens,
fizeram os mesmos um grande estrago na Fazenda Cajueiro, vez que não
conseguindo romper a resistência, mataram como vingança aproximadamente
uma dúzia de vacas que estavam nas cercanias da casa.
O tema cangaço que tem sido recorrente nas pesquisas do Projeto
Memórias, resgata não somente a história de Nossa Senhora das Dores, mas
também alarga a história de Sergipe, pois além de tudo gera resultados
na produção de artigos, documentários, filmes e discussões com o povo
que por certo abraça essa idéia e que no futuro próximo pode gerar
rendas e dividendos para muitos quando colocar de vez o seu município na
rota de turismo do cangaço.
Foi dentro desse contexto que Lampião pela terceira vez aportou em
Nossa Senhora das Dores, desta feita no último dia 31 de agosto de 2012,
com o livro LAMPIÃO CONTRA O MATA SETE. Aos abnegados pesquisadores e
historiadores, resgatadores da história cultural dorense, João Paulo de
Araújo de Carvalho e Manoel Messias Moura que comandam o Projeto
Memórias, exaro a minha eterna gratidão em poder dispor a minha obra
literária e apresentar uma palestra bem movimentada a um público de
pessoas interessadas e cultas que superlotou a galeria da Câmara
Municipal nesse glorioso e inesquecível dia.
Do Projeto Memórias e das suas conseqüências relacionadas ao cangaço é
trazido a tona fatos de relevância histórica até então desconhecidos da
maioria, pois o que se sabia desse tempo de luta, sangue, dor e lágrimas
em solo dorense, era somente que o seu povo apenas teria se humilhado
aos pés de Lampião – o que de fato ocorrera quando da sua primeira
visita a cidade sede – entretanto, conforme o dito, disso gerou reação e
resistência comprovando assim a força, a pujança, a determinação, a
bravura de homens que eram capazes de darem as suas próprias vidas em
defesa dos seus propósitos como assim o fez Jose Elpídio dos Santos, sem
dúvida um herói, um mártir ainda não reconhecido por Nossa Senhora das
Dores.