Luíz Antônio Barreto
Um poeta e seu ofício - João Silva Franco, o Sapateiro
João Silva Franco trabalhou duro para sobreviver. Negro, quase dois metros de altura, teve a vida marcada pelo sobrenome postiço
João
Silva Franco trabalhou duro para sobreviver. Negro, quase dois metros
de altura, teve a vida marcada pelo sobrenome postiço.
Profissionalizou-se como sapateiro, remendando o couro, trocando o
salto, pondo meia sola nos sapatos da população, independentemente do
poder aquisitivo de cada pessoa. Quem podia, é claro, comprava sapato
novo, em Aracaju, ou em outra qualquer cidade do País. Mas, quem tinha
dinheiro curto, e queria fazer bonito na festa de São Benedito, que é
colada na festa de Santos Reis, encerrando o ciclo natalino, entregava
seu sapato velho a João Sapateiro, estabelecido nas cercanias do Mercado
Municipal. Discreto, mas de boa conversa, o sapateiro exibia na sua
oficina de trabalho, folhas de papel pautado, repletas de palavras
escritas em letras de forma, fixadas nas paredes e nos poucos móveis do
seu canto laboral. Eram trovas, pequenos e longos poemas, que
surpreendiam a freguesia. João Silva Franco passou a ser conhecido como
João Sapateiro, e reconhecido como o sapateiro poeta.
O
pequeno espaço de trabalho de João sapateiro foi, em Laranjeiras, um
ponto de encontro, um daqueles lugares que reúne as pessoas para uma
conversa animada. Farmácia e barbearia, no interior, terminam sendo
locais atrativos, onde são formados grupos para as conversas, passando
em revista os assuntos dominantes da cidade. Em Laranjeiras o Cartório
de Antonio Gomes, a alfaitaria de Graquinho, e a oficina de João Silva
Franco, ao lado da farmácia de Antonio Rollemberg, se constituíram em
locais especiais, que assitiram a decadência econômica e cultural da
cidade, sentindo o êxodo dos mais novos,
que saíam para estudar, e o desaparecimento dos mais velhos, arrancados
da vida. Quando morreu Bilina, Laranjeiras chorou e o toque do Patrão
da Taeira silenciou, até que Maria de Lourdes, também já morta, foi
buscar o ritmo, as cores e a coreografia para continuar cantando: “Meu
São Benedito, eu não quero mais c’roa, quero uma toalha, enfeitada em
Lisboa.” Quando morreu Alexandre, os fiéis do culto negro tomaram nos
braços o seu caixão e desfilaram pelas ruas laranjeirenses, elevando e
baixando a urna funerária, num gesto simbólico da religiosidade dos
afrodescendentes.
João
Silva Franco viveu quase 90 anos, antes de morrer, placidamente,
quinta-feira, dia 9 de setembro de 2008. Sua poesia, tal qual sua arte
de consertar sapatos, é um patrimônio de Laranjeiras, um rico exemplo de
criação, que nada fica devendo aos vates nascidos naqueles domínios, e
que encantaram auditórios, animaram reuniões, motivaram saraus, e
deixaram que a alma laranjeirense tocasse as palavras, dispondo-as com a
beleza que é matéria prima própria dos poetas. João Ribeiro, Bitencourt
Sampaio, entre os mais velhos, Edith Vinhas, entre os contemporâneos,
foram artistas da lira, reinventando paisagens e sonhos, para ornar de
sutilezas a vida, sem sempre bela, do cotidiano de uma cidade desigual.
João
Silva Franco era um lírico, mas não cantava apenas o amor. Suas trovas
estavam afiadas como navalhas, cortando com cada verso o tecido da
realidade. Não calava diante das injustiças, mesmo quando a doçura de
seu jeito simples e bom acolhia a todos. Numa de suas quadras, publicada
na primeira antologia dos seus versos (Aracaju: Nova Editora de
Sergipe, 1965), João Sapateiro corrigia a admoestação de São Paulo, que
na segunda Carta aos Tessalonicenses exortava ao trabalho, como única
forma de sobrevivência. O poeta, tomado de justa ira, tingiu as linhas
do papel pautado com letras grandes, todas maiúsculas letras de imprensa, que diziam:
“QUEM NÃO TRABALHA NÃO COME
É CONVERSA MUITO FALHA,
PORQUE SÓ VEMOS COM FOME
O POVO QUE MAIS TRABALHA.”
Ele
mesmo, trabalhador e poeta, glória entre os simples, da grande e rica
Laranjeiras, fez do pé de cabra e do martelo, da faca afiada e do couro,
um ofício fino, para embelezar os pés dos seus contemporâneos, como fez
da palavra uma arma, manejada para criar beleza, com a coragem dos bons
e dos justos. Os sapatos, gastos, se perdem, mas a poesia continua
servida, nos livros que publicou.